3 de jun. de 2011

Padre

Hoje completo dezesseis anos de sacerdócio, mais um dia de festa pra mim! Lembro-me de cada detalhe do dia da minha Ordenação Presbiteral, de cada sentimento que percorria meu coração nos momentos que antecederam a imposição das mãos de Dom Serafim, bispo que presidiu a cerimônia. Por uma questão de espaço escolhi ser ordenado na pracinha do bairro, o que tornou-se profundamente significativo para a minha história, tinhamos o céu como testemunha.

O dia 3 de junho de 1995, sábado de Pentecostes, na parte da tarde, foi um dos momentos mais marcantes da minha vida, quando conclui um percurso que comecei muitos anos antes daquela “escolha final”. A história que pretendo contar, do meu sacerdócio ministerial, começa muito antes do dia marcado para a ordenação... Vou escolher começar com o dia do passeio a Cachoeira do Campo, quando fui visitar o André, filho da Dona Orminda, que estudava no Colégio Dom Bosco, próximo a Ouro Preto. Eu ainda era criança, tinha doze ou treze anos, não me lembro exatamente. Sei que, quando entrei naquele ambiente, tive certeza que um dia eu seria Padre. Interessante... até aquele dia eu não tinha nenhum tipo de relação com a Igreja. Não participava sequer das missas e não mantinha nenhum contato com a Paróquia Santa Cruz, que fica em frente à casa dos meus pais, no Bairro Vera Cruz. Depois daquelas horas no Colégio Dom Bosco, quando cheguei em casa, falei com minha mãe que eu tinha decidido ser Padre. Isso mesmo! Eu nunca tive dúvida a respeito da minha vocação e desde aquele dia, hoje perdido no passado, escolhi dedicar minha vida a Deus, aos Pobres, à Comunidade, à Igreja. Nessa ordem mesmo. Vocês podem estar se perguntando como é que um menino de doze anos sabe o que quer da sua vida... Eu sabia e pronto! Ao longo destes dezesseis anos tive poucos momentos nos quais pensei em abandonar meu ministério. Talvez não seja oportuno falar sobre isso hoje, mas, cansei de falar de coisas que não são profundas e, por isso, penso que os momentos de dor e sofrimento merecem ser lembrados, mesmo em dias de festa como este.

Minha primeira ‘crise’, se podemos chamar assim, aconteceu quando fui transferido da Paróquia Santissima Trindade, no Bairro Gutierrez, no final de 1999. Foi lá que vivi meus primeiros anos como Padre e aprendi tanto daquilo que hoje tento colocar em prática, foi onde me converti para o serviço aos pobres, depois de ter me afastado dos ensinamentos do Padre Léo, que é o Pároco de Santa Cruz, onde comecei a participar das missas, logo após aquela experiência no Colégio Dom Bosco. O Padre Léo é um personagem que merece a publicação de um livro, ele está completando cinquenta anos de sacerdócio este ano... Não vou me arriscar falar a respeito dele aqui, tá bom? Ele, assim como tantas outras pessoas que admiro, escolheu os pobres e isso serviu de lição para a minha vida. Conhecê-lo me fez decidir que, assim como ele, eu também queria escolher os pobres. Então, durante minha experiência no Gutierrez o Eduardo Cantarelli, leigo atuante da Santíssima Trindade, me convidou para conhecer uma parte da Paróquia que eu ainda não tinha visitado e, como quem acorda de um longo sonho - como aquela princesa que acorda com o beijo do príncipe encantado e volta à realidade - conheci por dentro uma comunidade de favelados, o pessoal do Morro do Cascalho, vizinhos pobres do bairro Gutierrez. Voltei à realidade e decidi que, daquele dia em diante, iria dedicar toda minha vida aos injustiçados e empobrecidos, aos excluídos e marginalizados. Aconteceu como naquele dia no Colégio Dom Bosco, decidi e pronto! Pensei em deixar de ser padre quando tive que abandonar a Ação Solidária do Morro do Cascalho, que ainda estava no início dos trabalhos. Eu acreditava ser fundamental minha permanência na Paróquia Santissima Trindade por mais algum tempo, para poder continuar utilizando o dinheiro dos ricos na organização daquela iniciativa junto aos pobres, até que a Ação Solidária se solidificasse, entendem? Eu não queria mais ficar trocando o piso de igreja... Queria que as crianças faveladas tivessem as mesmas oportunidades das crianças não faveladas e, por isso, organizamos um grupo para o Reforço Escolar, iniciamos a Pastoral da Criança, fundamos a Creche Vó Angelina, começamos a construçao do Centro Comunitario Nossa Senhora Aparecida dentro da favela. Sonhamos com a possibilidade dos Jovens do Gutierrez ajudarem a formar o Grupo de Jovens no Morro do Cascalho e tantas outras iniciativas mas, infelizmente, não rolou. Foi muito sofrido aquele período da minha vida! Fui transferido para a Paróquia Nossa Senhora do Morro e, naquele momento, mesmo estando feliz por chegar na comunidade que vivo até hoje, sentia que algo não tinha se concluido no Gutierrez. Por isso vivi uma crise de Esperança, que durou meses, posso dizer anos!

Quando cheguei na Barragem Santa Lúcia levei um grande susto! A Paróquia Nossa Senhora do Morro não tinha condição financeira para me sustentar. Passei muita dificuldade no início e só não cheguei a passar fome porque a Maria Francisca, que era empregada da casa paroquial, trazia da casa dela o que faltava na minha. Não apenas por isso, mas, hoje posso dizer que ela é a minha maior amiga. Desconfio que ela pegava as coisas escondidas do João, marido dela, só pra não me humilhar... Eu posso afirmar que as minhas latas nunca ficavam vazias. A Frã sempre dava um jeitinho de completar a minha dispensa e, no dia do pagamento dela, eu fazia a maior festa, quando via que tinha carninha gostosa no meu prato. Sinto que nunca consegui "consolar" o coração dela, mas isso é uma outra história. Afinal, quem é que não tem suas dores?

Também pensei em abandonar o sacerdócio no dia em que fizemos uma Assembléia Geral no Centro Social Padre Danilo, para eleger uma nova diretoria. Tive uma grande discussão com uma senhora da comunidade e comecei a gritar, tentando colocar pra fora toda raiva que sintia pelas injustiças do mundo... Lembro que a Cleunices, que é outra pessoa muito especial na minha história, me olhou no fundo dos olhos e falou: “Padre, já chega!” Só assim eu entendi que era pra calar minha boca e, graças a Deus, consegui me controlar. Terminamos a assembléia vitoriosos e, se a Cleunices não estivesse presente naquele momento, eu teria cometido o erro de falar demais, o que não era justo.

Depois desses dois momentos dificeis, que me fizeram sofrer muito, encontrei outras pedras pelo caminho... Nestes anos que estou aprendendo a ser favelado sinto a falta do apoio institucional da Igreja Católica, da qual faço parte por escolha e vocação. Sofro com o silêncio daqueles aos quais envio meus textos: os responsaveis pela Rede Catedral, para o Departamento de Comunicação da Arquidiocese, para os bispos e padres, para a Ação Social e Política Arquidiocesana... Quando tento denunciar as arbitrariedades da Prefeitura - mesmo antes da chegada do Programa Vila Morta - ou qualquer outra situação, onde considero fundamental a presença e a intervenção profética daqueles que deveriam ser os promotores de ações libertadoras e nao recebo respostas, isso me deixa muito triste. Mudei meu olhar a respeito da atuação da Igreja Católica desde quando cheguei no Morro do Papagaio. Não suporto mais ouvir falar de “Caridade Cristã”, me faz pensar nas “migalhas que caem da mesa dos filhos” . Busco uma Igreja Libertadora, onde TODOS são convidados para a Mesa da Partilha, a começar pelos pobres. Sinto falta daquela Igreja Profética, que o Padre Léo me ensinou a seguir, sinto falta de tantas pessoas que deveriam ser presença junto aos pobres e excluídos de cada favela abandonada desse ‘mundão de meu Deus’.

Ai, ai... Esse deveria ser um texto de Esperança! Mas preciso lembrar uma outra experiência difícil que vivi ha alguns anos, quando fizemos uma reunião da Forania Santo Antônio, na Capelinha da Vila Estrela. Haviamos preparado tudo, eu e Dona Jovem, pensamos que iríamos conseguir sensibilizar os representantes das paróquias vizinhas, achamos que eles nos ajudariam a construir a Capela e o Centro Comunitário que deveriam substituir o barracãozinho miseravel onde nos reuniamos para as Missas, Catequese e todas as atividades daquela comunidade. Lembro que o Padre Diogo, depois de ver o projeto que haviamos mostrado, quando dissemos que seria necessário o investimento de aproximadamente cento e cinquenta mil reais, ele nos disse: “Mas isso é impossivel.”. Lembro ainda que a Sônia, leiga que representava a Paróquia Santa Rita, sugeriu que deveríamos trocar uma das madeiras do telhado. Naquele dia, mais uma vez, pensei em abandonar o sacerdócio.

Gente, não posso deixar essa impressão horrivel, né?! Vamos falar dos momentos legais, agora? Acho que a minha média até agora é muito boa! Nestes trinta e dois anos de contato com a Igreja, dos quais completo dezesseis anos como Padre hoje, tirando esses poucos dias de “crise institucional”, sempre acrediter ter feito a opção certa. Sinto-me feliz e realizado nas escolhas que fiz. Para tentar mudar o clima posso falar a respeito do próprio Padre Diogo que, depois daquela triste reunião, foi o primeiro a contribuir com a construção da nova “Capela Maria Estrela da Manhã”. Ele conseguiu que o Conselho da Paróquia Santo Antônio, onde ele era Pároco, nos fizesse uma doação em dinheiro, o que possibilitou o início das obras. Depois chegou o Frei Cláudio, da Igreja do Carmo, que nos contou a história da “Ratoeira na Fazenda”, aquela do ratinho que pede ajuda aos outros bichos, para solucionar o problema da ratoeira que estava na casa. Pois é... o Frei concluiu a fábula dizendo: “O problema de um é o problema de todos!”. Assim que a capela ficou pronta começamos a construção do “Centro Comunitário Jesus Sol da Justiça”, a obra está bem adiantada, marcamos a inauguração para o dia 12 de outubro, quando vamos realizar a 12ª Caminhada pela PAZ. Conseguimos o dinheiro com o pessoal da Paróquia Nossa Senhora Rainha, do Belvedere, e da Paróquia Mariahilf, de Innsbruck, na Áustria. Na porta da Capela Maria Estrela da Manhã vamos escrever uma frase do Evangelho de Lucas: “Porque para Deus, nada é impossivel” (Lucas 1, 37).

No dia da minha ordenação, assim que terminou a missa, quando eu ainda vestido de Padre, fui até a casa da minha avó para que ela pudesse me abençoar. Ela estava quase cega e, por isso, segurando minha túnica, falou: “Dizem que as cortinas do inferno sao feitas com as batinas dos padres...” Eu, assustado, falei: “Vó, porque a senhora nao me disse isso antes?” E ela, com sua sabedoria adquirida ao longo do caminho, me fez entender que daquele dia em diante nada seria fácil pra mim e, segurando minha túnica, concluiu dizendo que estava nas minhas mãos portar adiante aquela ‘veste branca’ que eu tinha recebido no dia do meu Batismo, que agora tinha se tornado as ‘Vestes Sacerdotais’. Ela concluiu rezando para que aquelas vestes não se tornassem a causa da minha condenação. Eu entendi a mensagem dela e, por isso, é impossível não lembrar aquelas palavras em um dia tão festivo como esse.

Mesmo durante os momentos mais difíceis que passei, ao longo desses dezesseis anos, nunca perdi a Fé e nem a capacidade de Amar os pobres. Mesmo quando minha Esperança está em baixa lembro das escolhas que fiz e isso me fortalece na certeza da presença e bondosa de Deus, que encontrei ‘ao longo do caminho’. Posso afirmar que nunca me senti sozinho, sinto-me em constante comunhão com as comunidades por onde passei e, principalmente, com os pobres, que são o meu tesouro.

Padre Mauro Luiz da Silva
Padova, 03 de junho de 2011

31 de mai. de 2011

Panem et Circenses

Pão e Circo


Panem et Circenses (Pão e Circo) é uma frase em latim muito conhecida e utilizada na Roma Antiga, quando ainda era capital do poderoso e temido Império Romano, que conheceu sua ruina no ano 476 d.C. Diferente do que se pensa a frase, Panem et Circenses, não é fruto da fantasia popular, mas é atribuida um ao intelectual chamado Juvenal que escreveu: “O povo deseja, ansiosamente, apenas duas coisas: Pão e Circo.”. Este poeta foi um grande escritor e amava descrever o ambiente no qual ele mesmo vivia: um época na qual os políticos e imperadores eram capazes de qualquer falcatrua para manter o poder e a opressão sobre o povo e, por isso, precisavam do apoio das massas. A politica do “Pão e Circo” surgiu como forma de iludir os pobres, garantindo-lhes apenas comida e diversão para, assim, diminuir a insatisfação deles contra o mal governo dos tiranos e políticos da época. Durante os espetaculos sangrentos (Circo), como os combates entre gladiadores, que eram promovidos nos estadios para divertir a população, era distribuído pão de graça. Porém o custo desta política nefasta foi enorme e causou a elevação dos impostos e sufocou a economia do Império Romano, que caiu em ruinas e nunca mais se levantou. É com essa política do “Pão e Circo” que a Prefeitura de Belo Horizonte está conseguindo iludir os moradores das Vilas e Favelas. Porém, olhando para a nossa realidade, chegamos à conclusao que alguma coisa não está funcionando como antigamente pois está faltando o “Pão” da Educação, da Cultura, do Trabalho, da Moradia, da Saúde... E o que é pior, temos apenas o “Circo”, no qual se transformou a nossa cidade e política brasileira, e para nossa infelicidade, nós somos os palhaços que fazem rir os tiranos.

O Programa Vila Morta é mais uma tentativa dos governantes para nos expulsar da cidade deles. Estamos sendo feitos de palhaços nas mãos daqueles que foram eleitos para garantir uma cidade justa para TODOS e não apenas para alguns. Você ainda tem alguma dúvida sobre isso? Acha que estamos exagerando na dose? Eles querem nos expulsar das nossas casas, onde habitamos ha mais de 90 anos, quando nossos antepassados chegaram para construir a cidade que hoje nos exclui. Quantas vezes teremos de repetir que 1038 famílias faveladas estão sob ameaça de perderem suas casas e que, apenas, 624 apartamentinhos serão construidos no Aglomerado!! Quantas vezes teremos de perguntar para onde serão expulsas as outras 414 familias?? Os apartamentinhos que serão construídos tem 45 metros quadrados, sendo apenas 42 metros quadrados de área de vassoura (que significa: área utilizavel, descontando as paredes). Os apartamentinhos não tem garagem suficiente para todos, não tem laje onde você possa reunir sua família, não tem sistema de segurança contra incendio, não sabemos quando nos serão entregues as escrituras dos imóveis! Eles estão tranqüilos porque alguns moradores do aglomerado foram conhecer os apartamentinhos e ficaram "felizes" com a possibilidade de se mudarem para as caixinhas de sapato! Precisamos pensar: Quantos anos uma família, de seis pessoas, irá suportar viver em 42 metros quadrados? Em poucos anos os apartamentinhos serão vendidos para as grandes construtoras, que já devem ter dividido o terreno do Quilombo do Papagaio entre eles e o pessoal da prefeitura, para construirem apartamentões de luxo e ficarem ainda mais ricos. Assim, daqui a poucos anos, os pobres, negros e favelados, serão expulsos para Vespasiano, Jardim Canadá, Rosa Neves, São José do Goiabal... O mais longe possivel dos “Cartões Postais de Belo Horizonte” e a cidade deles vai estar bem bonita para o Circo, que vai ser a Copa do Mundo de 2014.

Para não perder o costume vamos repetir: Acorda Papagaio, o Programa Vila Morta da Prefeitura de Belo Horizonte chegou!